terça-feira, fevereiro 27, 2018

Kanu, estou fechado contigo

Caro Antônio Eduardo Pereira dos Santos "Kanu",

Hoje você é um, se não, o principal ídolo das arquibancadas do Barradão. Contagia desde crianças, velhos ranzinzas às mulheres. Todos nós sentimos algo a mais dentro de campo quando você está presente nestes tempos de dissabores. Os limites técnicos são superados com a vontade e até então lealdade aos adversários, não era um jogador de expulsões e agressões. E sim um leão que resguarda a nossa zaga com a dignidade dos etíopes na invasão fascista. Na frente, você supri a fragilidades dos atacantes, e adentra a área adversária como um espírito indomável para fazer gols até quando os refletores começam a ser desligados. Tornara-se nosso Pantera Negra nas bolas altas, prestes a tornar-se o nosso maior zagueiro artilheiro da história.

Tornaste-se ídolo também pelo sorriso e beleza, és um homão da porra, como diria os amigos da Brigada Marighella. Na escrita de Paulinho do Reco, és "O perfil azeviche. Que a negritude criou". No seu corpo estão as marcas de nossa mãe África, negada e amada, até mesmo no apelido em referência ao atacante nigeriano que trouxe o ouro olímpico na modalidade em 1996. No lugar que você cresceu, a Boca do Rio, está presente a história de resistência na orla de Salvador. O bairro dos tricolores Samuel Vida e Niltin é um enclave que sobreviveu à exploração imobiliária, e até acolheu pessoas expulsas na década de 1970 do Bico de Ferro, na Ondina. Você deve ter crescido ouvindo os relatos dos antigos pescadores que transformaram a região em um espaço de liberdade há muito tempo atrás. Pessoas como os seus pais que lhe deram nome e sobrenome de Antônio Eduardo Pereira dos Santos.

Sou um negro de pele clara, como diz a pensadora Sueli Carneiro. Nascido e criado em bairros e espaços da classe média soteropolitana. Não tenho nada a lhe ensinar no que vou dizer a partir daqui, e sim compartilhar olhares e experiências, como a do amigo tricolor de Pernambués, André Santana, pai de Benin. Ele alertou logo após a briga no último clássico que deveríamos repensar o modelo de masculinidade a que estávamos exaltando. Entre tantos esteriótipos que nos cabem, o homem negro violento é dos mais apreciados neste país. É um papel que teimamos muitas vezes em reproduzir e corresponder às expectativas subjetivas, estruturais e por vezes intencionais que nos levam às cadeias e cemitérios, e tantas outras formas de exclusão e deslocamentos cotidianos.

Falar de rac.... é assunto indigesto nesta terra, você sabe, tanto que a imprensa esportiva não abriu um mínimo espaço para discutir, ao menos, se a agressão de Lucas Fonseca a ti ano passado poderia ser interpretada como tal. Nem tinha visto a cena no estádio, mas o grande amigo rubro-negro, Lucas, morador de Itapuã e barbeiro no Lucaia, ligou logo após a peleja certo que sim. Outros tantos tricolores concordaram também. Na leitura do mestre Edson Cardoso, reinou o "afinal, tudo se contorna", como viria a ocorrer na espontânea denúncia de Renê Silva. 

Veja bem, quantas pessoas bateram na última briga do Barradão? Quais cenas de agressão foram destacas, inclusive algumas tão covardes quanto a sua? Foi a sua imagem alvo de desejo e insistência dos editores nos telejornais. Na sua brincadeira de boxel com torcedores, foste um bom álibi para desviar os conflitos dos bastidores. Lembrou os meninos que sorriem para as câmeras na boca do inferno das delegacias.  Joca, mais um irmão de cor, e tricolor, previu o cenário e pediu para dar um toque em ti. No fim das contas, ficaria como símbolo da brutalidade, e a partir daí no julgamento coube a ti a pena mais dura e exemplar. Nem ligaram para o seu histórico de lisura.

As pessoas lá de cima, seja qual for o clube ou torcida, costumam sempre levar penas brancas, ou melhor, brandas. Só ingênuos ou mal intencionados neste país ainda defendem punições com base em alguma neutralidade jurídica ou de ideias. Defender o punitivismo é um prato cheio para injustiças, principalmente quando parte da imprensa e seu papel chave em nossas vidas.

No calor do estádio, eu, e a maioria, aplaudiu o seu gesto de nos honrar na arquibancada, e também de pedir respeito às mulheres ofendidas pelo machismo aleatório e não menos covarde do jogador do Fazendão. Compreendo o seu furor. Talvez eu e muitos outros que condenam no pedestal agiriam da mesma forma. Mas é hora de pensar bem se queres continuar interpretando este papel, ou se queres voltar a ser o ídolo das primeiras linhas deste texto quando o sorriso e vontade chegam no balanço de uma prosa aos corações de nossa Wakanda, o Barradão.

Estou fechado com o Vitória e contigo nesta provável ausência da final que nos trará o tricampeonato. Fechado para refletirmos, nos tornarmos mais fortes e voltarmos a fita para o último BAxVI, quando a bola lhe procurava nos pés e na cabeça, espraiando a sensação que iria balançar as redes a qualquer momento.

Novas oportunidades há de pintar por aí.