quinta-feira, novembro 27, 2008

Maria Aparecida da Engomadeira

(No cartaz do protesto em Engomadeira: "Todos que matam um dia morrem . Justiça?")

Refavela

Reencontro África - Brasil
Em 1976 o movimento black music tomava conta das noites e penteados da juventude brasileira e Gilberto Gil foi convidado a participar de um festival de arte na capital da Nigéria, Lagos. O ex-Ministro retorna ao Brasil inspirado para gravar um dos álbuns de maior sucesso: Refavela (pode baixar). A capa foi uma parceria sua com Rogério Duarte e nas músicas influência afrobaiana com a regravação de Ilê Ayê: “Que bloco é esse?/ Eu que quero saber / É o mundo negro que viemos mostrar pra vocês”. Além de novidades rítmicas do continente “mãe”, como o balafon: “Isso que a gente chama marimba/Tem na África todo mesmo som/ Isso que toca bem, bem/Num lugar, não lembro bem/ Chama-se balafon”.
Outra faixa de destaque é Sandra, composta durante a prisão por porte de maconha em julho do mesmo 76. Sandra era o nome de sua namorada e também de uma tiete na época. Outras mulheres homenageadas são as enfermeiras do sanatório. Gil coloca alegria na batida e doçura na letra sobre um local que há muitos só guardaria péssimas lembranças.
(A detenção é retratada no documentário Doces Bárbaros):

"Isso aqui é favela! Engomadeira meu irmão!"

Quinta-feira, vinte e sete de novembro, catorze horas e vinte minutos. Entrei num busu Pituba/Mata Escura na Estrada das Barreiras, avenida que desemboca na Uneb do Cabula. Depois de subir a primeira ladeira são avistadas nuvens de fumaça preta no trânsito lento, característico do local. Pedestres correm assustados, carros traçam o caminho de volta, uma garota encontra um motivo para explicar o atraso ao telefone. O motorista ultrapassa quatro veículos a sua frente. Pára. Um colega chega à sua janela e lhe explica a situação. Confirma em voz alta o protesto:
"A polícia pegou dois e apareceram mortos dois dias depois".
Ao mesmo tempo a maioria dos passageiros desce as escadas. Fico dentro do ônibus com outras dez pessoas mais ou menos. Já posso ver numa esquina cartazes feitos de cartolina estendidos por mulheres, crianças e adolescentes. Um grupo de garotos negros, sem camisa, corre em nossa direção. Burburinhos são disparados:
"Fechem as janelas".
"Ho motorista feche essa porta. Tá querendo que eles entrem aqui?".
Passado o susto, solto uma ironia descomprometida:
"Pensei que fossem fazer arrastão".
Não convenço uma mulher na cadeira atrás. No corredor uma senhora branca com vestes de crente da igreja Batista comenta:
"Daqui a pouco chega polícia dando tiro e eles param com isso".
Não agüento e começo uma pequena discussão:
"Eles estão no direito dele. Mataram dois jovens".
"Se morreu é porque tinha culpa. Atualmente tá todo mundo morrendo".
"A senhora gostaria que fosse seu filho?"
(Já percebra anteriormente que ela estava acompanhada de um adolescente que aparentava ser seu filho).
"Meu filho tem educação".
O garoto entra na conversa com cabelos lisos de emo, voz fina, quase feminina.
"Eles não têm o direito de atrapalhar a vida das pessoas".
Desisto de argumentar. Chegam os pm´s e a ‘crente do cú quente’ vibra. Resmungo:
"Nem que fosse ladrão a polícia tinha o direito de matar".
O 'motor' desliga o motor e fala:
"Vou embora. Isso aqui não vai acabar tão cedo".
Outro 'motor' assume.
As viaturas continuam a chegar. Decido buscar outro rumo em sintonia com os restantes. O grupo retorna com uma média de idade menor. As primeiras pedras atiradas se quer têm força para destruir as janelas dos busus. Dois estouros são quase simultâneos. Uma criança enrrouca a voz:
"Vou queimar até gente hoje!".
Outro exibe o lado Fantasmão:
"Isso aqui é favela! Engomadeira meu irmão!"
O motorista desafia o bando:
"Pode quebrar tudo, mas não quero que me atinja".
Muitos fazem ironia com o pessoal da favela e a avenida fica mais cheia para assistir um "espetáculo". Eu caminho com cautela em direção à fumaça preta.
Uma jovem mulher é retirada à força ao ficar em frente de uma viatura. Percebo estar num lado ainda sem controle policial. Já posso ouvir os gritos de "assassinos" e "queremos solução".
Jovens mais velhos chegam com pneus. A polícia aponta as armas e as toma com facilidade. Mais sirenes são ouvidas. Ficam mais nítidas as dezenas de crianças e mulheres de todas as idades. Peço mais informações para um senhor que fecha o cadeado de uma barraquinha azul, daquelas quase extintas na gestão de Imbassahy. Sem levantar a cabeça ele responde:
"A Rondesp pegou dois lá de baixo. Apareceram mortos. Mas ninguém sabe se foi a polícia mesmo".
Enxergo um câmara da tevê Aratu e amplio a sensação de segurança. Passo por 'dentro' da manifestação a procura de alguém para saber mais detalhes. Um gordinho de bicicleta faz o gesto de negativo com a cabeça. Uma senhora negra de touca na cabeça e cartolina na mão profana:
"Esses policiais são os encostos da Igreja Universal no culto de terça-feira. Eles pegam a droga do pessoal para vender e ficam caladinhos na televisão. Mataram dois rapazes inocentes".
A amiga branca, grandona e gorda interrompe:
"Célia, tome cuidado. Sei o que você está sentindo", com os braços sobre o peito e os olhos marejados.
"Eles mataram que nem filme. Colocaram os meninos dentro do pneu e queimaram. Deu trabalho para reconhecer os corpos. Fizeram 'microondas' nos meninos", grita Célia.
"Meu Deus, foi 'microondas'. Vai precisar fazer DNA", diz a branca.
"Mãe, vamos para casa. Não quero ver a senhora assim", pede o um dos dois filhos não tão brancos.
Também sinto o chegar de minha hora em deixar o local. Acompanho os passos da senhora grandona com saia de crente, tatuagem verde e velha em um dos tornozelos. Ela volta o olhar para trás e aponta para outra amiga:
"Olha onde Detinha está meu Deus!".
Preparo o fone do meu celular para ouvir uma música. Mais gritos soluçados antes de sintonizar na rádio:
"Não tem só ladrão na Engomadeira não!".
A Educadora toca Gilberto Gil na música Sandra. Começa assim:
"Maria Aparecida, porque apareceu na vida/
Maria Sebastiana, porque Deus fez tão bonita/
Maria de Lourdes/
Porque me pediu uma canção pra ela".

Ps: A foto da manifestação em Engomadeira é do brother Evandro Veiga do Correio.