terça-feira, março 26, 2013

A CUMPLICIDADE AMEAÇADA



Ps: Escrevi este texto sob encomenda para um freela em 2009

Torcedores da dupla BaxVI têm a tradicional cordialidade em risco pela violência nos estádios

Perguntar: "você é Bahia ou Vitória?", costuma anteceder qualquer cumprimento na apresentação entre dois baianos. A partir da resposta os encontros entre os dois ganhará conotação diferente seja no ponto do táxi, barbearia, hospital, universidade ou no baba dos fins de semana. Se forem da mesma torcida, a cumplicidade será correlata na alegria e na tristeza. Mas se forem adversários nas arquibancadas, descambará para gozação diária.

A diferença para a maioria das grandes rivalidades regionais parece simples, mas a cumplicidade é regra e não exceção entre rubro-negros e tricolores. Cearenses, gaúchos, goianos, mineiros, pernambucanos e paulistas, por exemplo, não aconselham sair de casa em dia de clássico com a camisa do time sem as devidas companhias ou por uma trajeto que evite confrontos com os adversários.

Na "província" de Todos os Santos tais precauções eram inimagináveis até década 1990, mas o fato é que cordialidade futebolística baiana sofre ameaças há alguns anos, a começar pela arena dos duelos: o estádio. A espera da demolição e reforma, o Otávio Mangabeira, mais conhecido como Fonte Nova, era o símbolo da convivência pacífica.

Entre 1951 e 1994 os BaxVi's eram disputados somente na Fonte e a própria arquibancada representava a harmonia. Torcedores das duas equipes ficavam lado a lado numa extensa faixa de concreto, onde qualquer tricolor podia chamar o rival de Vicetória e a então minoria rubro-negra podia comemorar cercado de grandalhões adversários, sem levar uma 'muqueta' no 'cucuruco'.

Podia sair uma briga na Fonte por causa da fila da cerveja ou assobio indecoroso as companhias femininas, com seus legítimos shorts curtos nas avantajadas nádegas baianas. Tudo bem que as confusões recebiam influências porque as camisas tinham cores diferentes, mas ter no centro do bafafá o fato de ser Bahia e Vitória, naquele ambiente, era coisa de boiola, e essa fama ninguém queria levar na velha Fonte. Pra completar a molequeira, ao final iam todos juntos nas margens do Dique do Tororó, a caminho de um pagode mais próximo no início das noites de domingo.

A consolidação do Barradão em 1995 é fator a ser considerado para os tempos atuais de corriqueira violência. A partir do momento em que o Vitória passou a ter um estádio particular, foram criadas divisões mais definidas, a começar pela arquibancada. Os 'jahias' que se arriscavam a ir passaram a ficar espremidos dentro e fora do campo, sentiram o gosto de ser minoria, e de quebra ver o rubro-negro ganhar o primeiro tri campeonato estadual nos três primeiros anos em que direcionou o mando de campo para o Manoel Barradas, entre 1995 e 1997.

A resposta foi imediata, tricolores passaram a se apropriar de um estádio público, a Fonte, que deixou de ser "nossa", para ser o palco da festa azul, vermelha e branca. Pra continuar a menosprezar o rival, passaram a repetir insistentemente o apelido de Barralixo, em alusão ao antigo aterro sanitário do bairro de Canabrava, nas cercanias do estádio.

Enquanto o Baêa brincava de encher a Fonte e os degraus do Lixão ficavam entregues as "moscas". Se diga de passagem, a piada recorrente é que o Barradão é o maior estádio do mundo, porque "nunca" enche.

Essas brincadeiras não foram levadas na esportiva pelos torcedores do Vitória, que começavam a vibrar com time que deixara de ser relativamente pequeno para enfrentar qualquer um no mesmo nível em seus domínios. O tempo foi passando e as "moscas" do Barradão se transformaram em dinheiro. A Fonte foi ficando velha, maltratada, pelos dirigentes do clube e autoridades, e ganhou até o apelido de Fonte do Mijo. Até que em 2007 os degraus onde ficava a antiga torcida mista caiu e morreram sete tricolores, na fase final da Série C. Um símbolo da decadência de uma das maiores e mais belas torcidas brasileiras, bi-campeã nacional, e dona de 43 títulos estaduais.

A partir do fechamento da Fonte se iniciou um dos períodos de maior cizânia entre os cúmplices. O Bahia teve que jogar por um ano em Feira de Santana. A torcida do Vitória não aceitou emprestar o Barradas, porque não havia cicatrizado a ferida aberta em 1999, quando a diretoria do tricolor arranjou um mandato judicial para não jogar a finalíssima do estadual em Canabrava. Sem contar as piadas sobre o mau cheiro que ainda passeia pelo local.

Ao mesmo tempo as torcidas organizadas forçam que os clássicos sejam cercados de policiais, com cavalaria montada. Uma cena que, no mínimo, amedronta, mesmo no moderno e bem localizado Roberto Santos, o Pituaçu. são as organizadas responsáveis até por assassinatos, quando antes morrer em dia de clássico só era possível via ataque cardíaco oriundo das emoções no gramado.

Se engana quem acredita que perdeu-se a gozação. Diz o dito popular: "perco o amigo, mas não perco a piada". A molequeira entre ambos ainda sobrevive em tempos em que a novidade é a violência. O antigo Barralixo agora é Barradisney: o recreio dos tricolores. Isso porque se completaram três anos sem o Vitória vencer em seu mando de campo.

Já o Jahia, há oito anos sem título estadual, contratou como salvador, o dirigente de futebol Paulo Carneiro (PC), ex-presidente do rival. Carneiro ficou cerca de dez meses, ajudou afundar o clube em dívidas e deixou na zona de rebaixamento para terceira divisão. Pra completar chamou despretensiosamente a torcida tricolor de irracional, que virou sinônimo de burro, na mesa de bar e na fila do acarajé.

A declaração de PC, polêmico como sempre, reabriu uma discussão infértil: que existem torcidas mais apaixonadas do que outras. Como se fosse possível medir o sentimento de um bando de louco por futebol. Até mesmo os sobreviventes do Galícia e Ypiranga, grandes times de outrora em Salvador, são apaixonados, e ponto final.

Falando em times em extinção, fica o alerta aos tricolores e rubro-negros, se unirem para fortalecer o futebol local e consequentemente o que tem de mais peculiar: a torcida, com seus tambores, ritmos nas palmas da mãos e principalmente a brincadeira, sadia e corriqueira.

A escolha de Salvador como uma das sub sedes da Copa do Mundo de 2014 e a promessa de uma nova Fonte pode ser um reencontro dos estádios mistos, com a cumplicidade ainda persistente nas ruas. Basta aos dirigentes, empresários e autoridades acertarem os ponteiros e criarem programas educativos para darem condições aos torcedores retornarem as brincadeiras nas arquibancadas, lado a lado.