sexta-feira, novembro 17, 2017

Café com Canela: um cinema em busca do público


No desenrolar do longa Café com Canela, Margarida, interpretada por Valdinéia Soriano, busca o reencontro com o prazer de viver e descreve as memórias de entrar na escura do sala de cinema, sentir o cheiro do estofado, e mergulhar em estórias que refazem sua experiência com o mundo.

O filme, e, a cena, é uma síntese do encontro com o público. Não a toa, Café levou o prêmio do júri popular na 50º edição do Festival de Brasília, e no XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema em Salvador, ao se aproximar de um conjunto de obras identificadas com o cinema negro, responsáveis por enfrentar o vazio das narrativas nos festivais nacionais, que pouco chegam ou pretendem chegar na maioria da população.

Na autoria artística, a sua inclusão no âmbito do cinema negro está na corporificação de uma das integrantes da dupla de diretoras, Glenda Nicácio, no elenco, e suas perfomances a cerca dos conflitos humanos.

Já a simbologia da cultura negra é de um teor clássico e inerente na trilha sonora, na paisagem, religiosidade e pequenos hábitos das cidades históricas de Cachoeira e São Félix, no Recôncavo baiano. A direção de arte, de Glenda, consegue traduzir este universo sem exageros metódicos nas cores das paredes, na disposição e adereços que compõe a cena.

O roteiro é de um melodrama com pitadas de neorrealismo, sob uma estrutura cambaleante, superada na interpretação segura de Valdinéia, atriz de longa trajetória de um grupo de teatro negro, o Bando de Teatro Olodum, e premiada como melhor atriz no Festival de Brasília. O seu papel não fica só, nem mesmo precisa se impor, ao se comparar o histórico de narrativas que excluem ou subjugam a capacidade de ação da mulher negra. O dilema da sua personagem, refém da solidão e loucura após uma tragédia, é enfrentado com a ajuda e um nível de coprotagonismo da jovem Violeta, interpretada sob um naturalismo leve e apaixonante de Aline Brunne, a que tivemos a sorte de descobrir-se enquanto atriz durante a criação do filme.

Tão expressivo quanto as duas, é o sorriso no olhar da avó de Violeta, Roquelina, encarnada por Dona Dinalva, uma sambadeira e integrante da irmandade da Boa Morte; bem como na autonomia da sua amiga Cidão (Arlete Dias).

São as mulheres as protagonistas dos segredos e do curso da vida em Café com Canela. São elas, e suas atrizes, que fogem de uma leitura imobilizante da solidão da mulher negra, e manejam uma performance afetiva, típica do cinema negro no feminino, conceituado por Edileuza Penha de Souza (2014). Por sinal, durante o debates do filme, tanto em Salvador, quanto em Brasília, foi possível perceber a contribuição das atrizes e da diretora para superar as imperfeições do roteiro.

Mas a presença masculina nas suas vidas não é apenas pelo vazio ou coerção que tentam imputar como papel do homem negro. Há uma possibilidade de solidariedade, presente no marido de Violeta, Paulinho (Guilherme Silva); e no médico Ivan que revisa a infeliz domesticação do homossexual negro, no corpo do único ator “global”, Babu Santana. 

Ambivalência
Café com Canela carrega um dilema para o cinema negro nos postos principais de propriedade intelectual, pois Glenda Nicácio divide a direção com um branco, Ary Rosa, e o mesmo também é o autor do roteiro. Seja por Zózimo Bubul, o Dogma Feijoada, e a maioria do ciclos internacionais do cinema negro, corporificar a direção é o ponto onde o diálogo com o Outro não está disposto a concessões. Porém, em um universo escasso de diretoras negras, não dá para secundarizar a contribuição de Glenda. Mais ainda, temos um caso que nos faz repensar o poder intransponível da direção, o seu modelo de autoria individual, e como isso pode enfraquecer o aspecto coletivo do cinema negro.

Nesta obra, a cultura negra consegue transformar em algo sublime a experiência de terror do passado e do presente, por meio de símbolos, performances e prioritariamente fluxos de reconhecimento entre pessoas com uma história em comum (GILROY, 2012). Fazer essa operação de uma dupla consciência, ambivalente, dentro da indústria audiovisual, uma das maiores expressões do domínio brancocêntrico moderno, é algo inerente a qualquer ciclo ou integrante do cinema negro no mundo.

Também é inerente ao cinema negro, e qualquer outro movimento cinematográfico, imprescindir do elemento político. Nas palavras de Viviane Ferreira, é o aspecto político, e não a meritocracia que possibilita às mulheres negras conseguir realizar filmes de longa metragem no Brasil. Viviane fala com a propriedade de ser a diretora do renomado curta Dia de Jerusa (2014), em processo para se transformar no primeiro longa de ficção dirigido exclusivamente por uma mulher negra, desde que Adélia Sampaio filmou Amor Maldito (1984).

Porém, Café com Canela, prioriza politicamente como lugar de fala responsável por sua produção o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), em Cachoeira, algo explicitado na fala de abertura de Ary Rosa no XIII Panorama em Salvador.

O curso da UFRB foi criado em 2009, e, de lá para cá não foge do quadro de ausência de professores negros e negras no nível superior brasileiro. Tem um corpo docente respeitável, liderado por Amaranta Cesar, uma conhecedora do cinema africano, mas não existe um Osmundo Pinho ou uma Ângela Figueiredo, professores da UFRB que colocam a universidade na rota transatlântica mais avançada do pensamento negro e descolonial.

O posicionamento do curso no fluxo do cinema negro é primordialmente a partir dos alunos, e tem como marco o surgimento do coletivo Tela Preta. Coube a eles realçar uma agenda política, uma literatura, e um modo da fazer, inclusive por ousar na ficção em um curso focado no documentário, por meio de Cinzas (2015), de Larissa Fulana de Tal, e agora com O Som do Silêncio (2017), de David Aynan. Duas obras dotadas de complexidade suficiente para compor qualquer narrativa densa sobre o cinema negro contemporâneo no Brasil. Diga-se de passagem, Café com Canela deixa rastros da influência do Tela Preta ao utilizar o ator protagonista de Cinzas, Guilherme Silva, e contar com a participação de uma das suas integrantes, a jovem e já experiente Thamires Santos, entre as assistentes de direção e produção. 

A exibição  
A experiência mais instigante do cinema negro é o ciclo dos race movies nos EUA, entre os anos 1910 e 1940, quando Oscar Micheaux foi ícone de um cinema coerente na linguagem, na autonomia da produção, e, por fim, no controle ou capacidade de explorar a exibição.

Nos resta agora finalizar ao falar da exibição, processo chave para chegar até um público negro que tem fortalecido a obra nos festivais. Café com Canela tem garantida a exibição em uma televisão pública aberta, a TVE-BA, enquanto contrapartida do edital que o credenciou, realizado pelo Instituto de Radiodifusão Pública da Bahia (Irdeb), com aporte majoritário do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Fora a televisão, uma janela de significativo alcance popular, Café com Canela, ainda é restrito a festivais, e o perfil da produção tende a caminhar por salas de cinema controladas por grupos seletos que veem as plateias estagnarem juntamente com o vazio das suas obras. Hoje, o cinema negro se tornou necessário para a sobrevivência deste círculos, e não a toa ganha prêmios e mais prêmios, a exemplo da farra na X Janela Internacional de Recife que escolheu Deus (2017), de Vinicius Silva, como melhor filme pelo júri oficial.

No Festival de Brasília, quando fez sua estreia, Café com Canela foi tragado por uma estratégia da branquitude: continuar a discutir a questão racial a partir do seu olhar, nesse caso, o paternalismo e a tentativa de silenciamento presente nas imagens e na repercussão de Vazante, dirigido por Daniela Thomas.

Já a exibição no Panorama em Salvador, o público foi proporcionalmente menor e embraquecido ao se considerar o estrondo no verão de 2016, quando as salas da cidades encheram para o lançamento de Òrun Àyiê: a criação do mundo, de Cintia Maria e Jamile Coelho, e as exibições de estreia na cidade de Cinzas (2015); Dia de Jerusa (2014); Verão dos Deuses (2015), de Eliciana Nascimento; e Kbela (2015), de Yasmin Thayná.

O local do Panorama, o Espaço Unibanco - Glauber Rocha, é sintomático do elitismo colonial baiano-brasileiro. Foi onde o antigo Cine Guarany se transformou na primeira, e talvez única sala fomentada pela Embrafilme devido uma luta dos cineastas locais frente o misto de fechamento e controle internacional sobre a exibição adensada nos anos 1970 e 1980. O prédio continua a ser público, mas segue um traço pop cult desde que ingressou no circuito Itaú-Unibanco. Hoje vive vazio, um corpo estranho para os transeuntes e habitantes do Centro, e, mesmo que não queira, dialoga com o projeto de higienização da região, a começar pela retirada dos comerciantes da vizinha Rua do Couro.

Durante um sobrevoo no último Panorana, o público parecia mais interessado na festa do terraço, e a repercussão sobre a maioria dos filmes era desanimadora. A sensação foi de respiro quando o cinema negro deixava seus rastros nos curtas de 2017: Nada, de Gabriel Martins; Travessia, de Safira Moreira; O Som do Silêncio, de David Aynan; Pela Suja Minha Carne, de Bruno Ribeiro; e Na missão, com Kadu, de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia, capaz de cortar o silêncio da sala com soluços. Ou quando um cinema de assunto negro respeitável se apresentou nos longas documentais: Diários de Classe, de Maria Carolina e Igor Souto; e Quilombo Rio dos Macacos, de Josias Pires.

Café com Canela, e o conjunto do cinema negro, tem a possibilidade de fugir do exclusivismo deste ambiente de recepção, que flutua entre salas de arte e complexos multiplex. 

O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, no Rio de Janeiro, e as dezenas de mostras, seminários e festivais, como a I Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio, em Brasília, são alguns dos canais que se relacionam com todas as formas de construção comunitária e diasporica dos nossos territórios, e principalmente com o público. Um cenário não contabilizado no receituário da Ancine, mas que permite as Margaridas encontrarem um ambiente de afeto e liberdade.  

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GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade/ Tese (doutorado) - Universidade de Brasília, Programa de Pós -Graduação em Educação, 2013.