domingo, dezembro 06, 2020

O que move a torcida mais negra do Brasil?











Créditos: /ECV/Maurícia da Matta

Sábado, 05 de dezembro, saio de casa às 7h e uma das primeiras vistas é um senhor caminhando com a camisa do Mais Querido, o Ypiranga. O uniforme amarelo e preto, utilizado por Mestre Pastinha na sua moderna e ancestral capoeira de angola, ameaçou as elites baianas entre os anos 1910 e 1951, ano do seu último título.

Talvez você não tenha noção, mas o maior ídolo desse time, Popó, o Apolinário Santana, é homenageado na rua principal do Engenho Velho da Federação, o bairro que talvez mais congregue terreiros de candomblé por metro quadrado no mundo, muitos deles de importância ímpar, como Bogun, Oxumarê, Casa Branca e Cobre.

Um time de torcida, jogadores e até dirigentes pretos, vindos do trabalho portuário dominado por africanos e seus filhos, que ameaçava as elites de perder o controle sobre os negócios e o simbólico de uma das coisas que mais move corações e mentes por aqui.

Na geopolítica do futebol brasileiro, o Vasco da Gama é o mais conhecido pela transgressão por profissionalizar jogadores negros. Mas em Salvador na época que o Ypiranga crescia vinham outros clubes com perfis semelhantes como Botafogo, Fluminense, São Bento, Nacional e Internacional.

A resposta foi a “Liga dos Brancos”, capitaneada por agremiações como o Esporte Clube Vitória, o Baiano de Tênis e a Associação Atlética. Eles traziam até jogadores brancos de outros países, mas perdiam o bába nos campos da Pólvora ou do Rio Vermelho.

O jeito dado na nossa história de mãos sujas de sangue foi praticamente acabar o Ypiranga, e apresentar outras paixões para o povo dessa cidade que adora gingar e chegar junto para disputar a bola. É nessa pegada que o Baiano de Tênis e a Associação Atlética fundam o Esporte Clube Bahia na década de 1930, quando o mito da democracia racial finca suas garras de uma identidade nacional e baiana que o negro é mero folclore, diria Abdias do Nascimento.

Tempo difíceis, de ditaduras que fizeram homens como Carlos Marighella, ciente e vivendo o racismo que se abatia nessa terra, seguir a sina de não falar muito de raça.

Pois bem, depois de ver o senhor com a camisa do Ypiranga, voltei para casa porque tinha esquecido algo. Quando retornei na rua chovia para me lembrar que no dia anterior, uma sexta-feira 04 de dezembro, dia de festejos de uma filha de Oyá muito famosa, Barbinha, a chuva apareceu no meio de um sol escaldante.

Foi nesse mesmo dia que a torcida mais negra do país, a do Esporte Clube Vitória, terminou a noite em prantos e silêncio.

Sim, o time de cântico nêêêgôôôôô foi apontado como a torcida proporcionalmente mais autodeclarada negra do país segundo o Datafolha (2019), com cerca de 90% não brancos. Anos atrás, o jornal Correio24h fez uma pesquisa sobre o perfil do torcedor do Salvador e a presença rubro-negra em bairros populares também foi expressiva e proporcionalmente superior ao rival.

Lidar com esses dados, nus e crus, já é por si um giro para você acostumado com o lenga lenga que o Vitória é o time de uma torcida de elite, e tantas outras bobagens que circulam por aí.

Muitos ypirangueses como meu tio Evandro foram dividindo o coração e se identificando com o vermelho e preto de Siri, Romenil, André Catimba, Bigu, Dida... Virou o time a ter um africano como ídolo, o nigeriano Rick, algo desconhecido no Brasil. 

Virou o time da família Vitória Afro de Imolê, Fábio Mandingo, Lulu, Josie, Adriana, Guell Adún, Gonesa, Laurentino, Leleco, Luciana, Ícaro, Leo Ornelas, Sílvio Oliveira, Leandro Omowale, Sento Sé, MC Xarope, Mauro, Salamanda, Dão, Fafá, Gledson...      

São esses corpos a descer as arquibancadas do Santuário a ameaçar novas e velhas elites que negam ou usurpam a democracia, nossas joias que brotam na divisão de base, e o dinheiro movimentado por uma das maiores do país (os rankings costumam apontar que temos uma nação maior que Coritiba, ATL-PR, Ceará, Fortaleza, Santa Cruz e trocando pau a pau com a do Sport).  

Veja, não temos um título brasileiro, temos um dos maiores desníveis dentro dos campeonatos estaduais com o principal rival, e nosso maior trunfo é ser o maior campeão do nordeste, sob constante ameaça.

O Vitória é o time que poderia ter sido, que poderia ter vencido, mas alguma coisa do destino vai lá e nos coloca em desgraça ou em uma final contra o Palmeiras Parmalat ou o Santos de Neymar, Ganso e Robinho.

Mais uma vez essa nuvem carregada que atormenta os fiéis do nosso quilombo, o Barradão, chegou quando o Confiança de Sergipe, que até outro dia vencíamos estalando os dedos, virou o jogo em menos de três minutos e tirou a crença que irradiava as redes sociais em tempos de pandemia: temos condições de dar um arrancada e voltar para Série A (por onde nosso melhor período foi na década de 1970, e entre 1993 e 2003, quando o Brasil tinha tantos craques que foi para três finais de copa do mundo e venceu duas).  

Nós tivemos grandes times e jogadores. Mas no fundo nunca fomos do âmago das elites do futebol. Nosso romance é daqueles que se fazem das tragédias, dos pontos de vistas silenciados pela imprensa, dos árbitros mal intencionados, e um imponderável que se torna regra como a virada do Confiança.   

O sofrimento já faz jus à alma rubro-negra ser uma das mais negras desse país, como a Ponte Preta. Mas ser negro é também quem faz da dor o sublime, a alegria ou mesmo a violência. Seja o que for, na pomba ou no facão, é preciso se conhecer e se amar para se mover, e chegar até onde sabe lá no fundo que chegará: a redenção.    

Um caminho que pode ficar mais distante se a ira insuflada por seu presidente e os fracassos nos últimos anos for deslocada aos jogadores e torcedores.  

segunda-feira, maio 13, 2019

Ruan Potó: de volta para o futuro



O relógio arranhava os 45 minutos do segundo tempo quando menino Ruan Potó partiu em direção a bola que sobrou na entrada da área. Conseguiu evitar o companheiro já banguela e azarado, Neto Baiano, e ao chutar ultrapassou o goleiro e a zica para estufar as redes e virar a partida contra o Vila Nova.

Talvez muitos de vocês não tenham noção da epopeia ali envolvida, mas o jovem da base estreou no profissional com dois gols que ficam para a história do decano do futebol baiano, que completa neste 13 de maio120 anos. 

Já se passavam 13 jogos que o times não vencia, e uma grave crise política parecia nos caminhar para um fosso sem fim. Porém, o principal é que entramos no Barradão cientes que vai deixar de ser o nosso mando de campo por três anos para o mundo artificial das arenas, onde os corpos e corações são setorizados.

Se voltarmos, é possível que o  Barradas já não será mais o mesmo lugar onde podemos correr na arquibancada na hora do gol e abraçar um desconhecido sem um cadeira para atrapalhar. Uma ágora onde sentamos ao lado de alguém com ingresso mais barato, e aproveitamos o intervalo para tomar uma cerveja com o amigo que fica do outro lado, como fez Tharsis da família Vitória Afro.

Quem sabe não será também onde a chuva gelada é uma constante, e só bem vinda quando ganhamos uma partida como esta no dia 04 de maio de 2019. Qualquer sorte, não fará mal perder tanto tempo nos engarrafamentos e filas, a falta de ônibus, ou subir escadas para lá de inclinadas.
 
Neste dia histórico coube ao menino Ruan no primeiro gol entortar um zagueiro como há tempo não se via, pois nosso ataque acostumou-se a enfrentar adversários como se fosse uma batalha de UFC. Ainda assim, a corneta potencializada na nossa baixa estima continuava a maltratar os jovens da base. 

O goleiro Caíque, o CatBlack que mistura a envergadura de Dida e a loucura de Fábio Costa, parece ter envelhecido dez anos, mas era criticado quando acertava. Já Ruan sentia as dores da estreia no "baba de homem", e era sentenciado: "O menino mal começou e já tá caindo no chão".

O destrato à base é destas psicologias coloniais a serem superadas na nação rubro-negra, e parece que está no dia a dia dos jogadores no centro de treinamento. Veja, Lucas Ribeiro, o melhor e mais elegante zagueiro que vi com nossa camisa, desde que minha memória acompanha tudo em 1992, tinha o apelido de Barata, um inseto peçonhento que dispensa maiores apresentações do seu teor pejorativo.

Tempos atrás Marcos André, conhecido como Vampeta, ganhou o apelido que mistura vampiro com capeta porque não tinha os dentes da frente, e nem por isso deixou de ser um dos maiores nomes que vestiu este manto até ser campeão do mundo com a seleção.

Já Ruan Levine, é chamado de Potó, um inseto capaz de deixar queimaduras, e manchas no corpo. Entendo o seu pai, a primeira coisa que precisamos afirmar é nosso nome e sobrenome, mas Potó é um besouro que solta uma toxina apenas quando o perturbam, vive nas matas, como na sua cidade em São Sebastião do Passé, não tem nada de feio ou sujo. Pode assumir ele de boa, porque já pegou na torcida, é nosso símbolo de alma ferida e acuada que revida para não morrer. Aliás, o potó mais comum é vermelho e preto.

O drible no primeiro gol, e a fome com quem avançou para marcar no final me fez lembrar de Nadson, o Nadgol. O menino que entrou num BaxVi para marcar três gols e virar o placar, tornou-se revelação do Brasileiro de 2003, e titular da seleção pré-olímpica quando foi vendido pra Coréia. Sua carreira promissora declinou ali, foi tirado da seleção, que por sua vez, nem se classificou às Olimpíadas de 2004.

Potó me fez lembrar de um passado que o futuro tinha toda a pinta de glorioso se nossos craques não fossem vendidos abaixo do preço, e sem nos trazer conquistas - como poderia ser a nossa Copa do Brasil com Nadson em 2004? Tempo que o Barradão vivia vazio, principalmente no meio do campeonato, com ingressos caros e falta de estímulo ao sócio torcedor, que poderia insuflar o time e evitar o rebaixamento da Série A nesse mesmo ano.

Pois bem, tantas dores e frustrações pareciam pousar na memória da arquibancada neste sábado até a chuva virar redenção. Foi quando Ruan Potó estufou as redes e correu para comemorar. A água virou festa e o velho Barradão foi celebrado e saudado. Um santuário que esperamos ser preservado tão quanto os nossos meninos da base, fontes de um futuro há tempos aguardado nestes 120 anos.

terça-feira, fevereiro 27, 2018

Kanu, estou fechado contigo

Caro Antônio Eduardo Pereira dos Santos "Kanu",

Hoje você é um, se não, o principal ídolo das arquibancadas do Barradão. Contagia desde crianças, velhos ranzinzas às mulheres. Todos nós sentimos algo a mais dentro de campo quando você está presente nestes tempos de dissabores. Os limites técnicos são superados com a vontade e até então lealdade aos adversários, não era um jogador de expulsões e agressões. E sim um leão que resguarda a nossa zaga com a dignidade dos etíopes na invasão fascista. Na frente, você supri a fragilidades dos atacantes, e adentra a área adversária como um espírito indomável para fazer gols até quando os refletores começam a ser desligados. Tornara-se nosso Pantera Negra nas bolas altas, prestes a tornar-se o nosso maior zagueiro artilheiro da história.

Tornaste-se ídolo também pelo sorriso e beleza, és um homão da porra, como diria os amigos da Brigada Marighella. Na escrita de Paulinho do Reco, és "O perfil azeviche. Que a negritude criou". No seu corpo estão as marcas de nossa mãe África, negada e amada, até mesmo no apelido em referência ao atacante nigeriano que trouxe o ouro olímpico na modalidade em 1996. No lugar que você cresceu, a Boca do Rio, está presente a história de resistência na orla de Salvador. O bairro dos tricolores Samuel Vida e Niltin é um enclave que sobreviveu à exploração imobiliária, e até acolheu pessoas expulsas na década de 1970 do Bico de Ferro, na Ondina. Você deve ter crescido ouvindo os relatos dos antigos pescadores que transformaram a região em um espaço de liberdade há muito tempo atrás. Pessoas como os seus pais que lhe deram nome e sobrenome de Antônio Eduardo Pereira dos Santos.

Sou um negro de pele clara, como diz a pensadora Sueli Carneiro. Nascido e criado em bairros e espaços da classe média soteropolitana. Não tenho nada a lhe ensinar no que vou dizer a partir daqui, e sim compartilhar olhares e experiências, como a do amigo tricolor de Pernambués, André Santana, pai de Benin. Ele alertou logo após a briga no último clássico que deveríamos repensar o modelo de masculinidade a que estávamos exaltando. Entre tantos esteriótipos que nos cabem, o homem negro violento é dos mais apreciados neste país. É um papel que teimamos muitas vezes em reproduzir e corresponder às expectativas subjetivas, estruturais e por vezes intencionais que nos levam às cadeias e cemitérios, e tantas outras formas de exclusão e deslocamentos cotidianos.

Falar de rac.... é assunto indigesto nesta terra, você sabe, tanto que a imprensa esportiva não abriu um mínimo espaço para discutir, ao menos, se a agressão de Lucas Fonseca a ti ano passado poderia ser interpretada como tal. Nem tinha visto a cena no estádio, mas o grande amigo rubro-negro, Lucas, morador de Itapuã e barbeiro no Lucaia, ligou logo após a peleja certo que sim. Outros tantos tricolores concordaram também. Na leitura do mestre Edson Cardoso, reinou o "afinal, tudo se contorna", como viria a ocorrer na espontânea denúncia de Renê Silva. 

Veja bem, quantas pessoas bateram na última briga do Barradão? Quais cenas de agressão foram destacas, inclusive algumas tão covardes quanto a sua? Foi a sua imagem alvo de desejo e insistência dos editores nos telejornais. Na sua brincadeira de boxel com torcedores, foste um bom álibi para desviar os conflitos dos bastidores. Lembrou os meninos que sorriem para as câmeras na boca do inferno das delegacias.  Joca, mais um irmão de cor, e tricolor, previu o cenário e pediu para dar um toque em ti. No fim das contas, ficaria como símbolo da brutalidade, e a partir daí no julgamento coube a ti a pena mais dura e exemplar. Nem ligaram para o seu histórico de lisura.

As pessoas lá de cima, seja qual for o clube ou torcida, costumam sempre levar penas brancas, ou melhor, brandas. Só ingênuos ou mal intencionados neste país ainda defendem punições com base em alguma neutralidade jurídica ou de ideias. Defender o punitivismo é um prato cheio para injustiças, principalmente quando parte da imprensa e seu papel chave em nossas vidas.

No calor do estádio, eu, e a maioria, aplaudiu o seu gesto de nos honrar na arquibancada, e também de pedir respeito às mulheres ofendidas pelo machismo aleatório e não menos covarde do jogador do Fazendão. Compreendo o seu furor. Talvez eu e muitos outros que condenam no pedestal agiriam da mesma forma. Mas é hora de pensar bem se queres continuar interpretando este papel, ou se queres voltar a ser o ídolo das primeiras linhas deste texto quando o sorriso e vontade chegam no balanço de uma prosa aos corações de nossa Wakanda, o Barradão.

Estou fechado com o Vitória e contigo nesta provável ausência da final que nos trará o tricampeonato. Fechado para refletirmos, nos tornarmos mais fortes e voltarmos a fita para o último BAxVI, quando a bola lhe procurava nos pés e na cabeça, espraiando a sensação que iria balançar as redes a qualquer momento.

Novas oportunidades há de pintar por aí.

sexta-feira, dezembro 22, 2017

Qual o problema com o mulato?

O mulato foi e continua a ser problematizado por carregar a conotação etimológica da mula: um equino geralmente estéril devido o cruzamento de raças biologicamente distintas dessa espécie. Mulato no racismo científico é sinônimo de deformação.
Porém, quando Abdias do Nascimento metaforiza o mulato na figura do capitão do mato ele aponta uma disfunção à nível da consciência do indivíduo no mundo. Aquele que rejeita simbolicamente a si, a mãe e aos irmãos para negar a cultura africana, e, em última instância, a sobrevivência do corpo negro.
O mulato e a mestiçagem são compreendidos no âmbito histórico e sociológico por Abdias. No resgate dos dados demográficos ele levanta como o pardo e o mulato foram utilizados para diminuir o número de pretos ou negros nas estatísticas do país. Mas o exercício dele é abraçar à uma realidade comum às diferentes tonalidades da pele entre os mestiços brasileiros.
Tanto que ele influenciou na atual configuração institucional a categoria negro enquanto junção entre pardos e pretos. Um dos poucos legados que conseguiu fissurar o mito da democracia racial nos discursos e no Estado.
Legado combatido por mulatos que carregam a patologia da brancura, como diria Guerreiro Ramos.
Faceta de um genocídio que se perpetua nos disparos certeiros dos policiais militares, e vai além do extermínio, nos aspectos psicológicos, morais e culturais das vendedoras do Bolinho de Jesus.

sexta-feira, novembro 17, 2017

Café com Canela: um cinema em busca do público


No desenrolar do longa Café com Canela, Margarida, interpretada por Valdinéia Soriano, busca o reencontro com o prazer de viver e descreve as memórias de entrar na escura do sala de cinema, sentir o cheiro do estofado, e mergulhar em estórias que refazem sua experiência com o mundo.

O filme, e, a cena, é uma síntese do encontro com o público. Não a toa, Café levou o prêmio do júri popular na 50º edição do Festival de Brasília, e no XIII Panorama Internacional Coisa de Cinema em Salvador, ao se aproximar de um conjunto de obras identificadas com o cinema negro, responsáveis por enfrentar o vazio das narrativas nos festivais nacionais, que pouco chegam ou pretendem chegar na maioria da população.

Na autoria artística, a sua inclusão no âmbito do cinema negro está na corporificação de uma das integrantes da dupla de diretoras, Glenda Nicácio, no elenco, e suas perfomances a cerca dos conflitos humanos.

Já a simbologia da cultura negra é de um teor clássico e inerente na trilha sonora, na paisagem, religiosidade e pequenos hábitos das cidades históricas de Cachoeira e São Félix, no Recôncavo baiano. A direção de arte, de Glenda, consegue traduzir este universo sem exageros metódicos nas cores das paredes, na disposição e adereços que compõe a cena.

O roteiro é de um melodrama com pitadas de neorrealismo, sob uma estrutura cambaleante, superada na interpretação segura de Valdinéia, atriz de longa trajetória de um grupo de teatro negro, o Bando de Teatro Olodum, e premiada como melhor atriz no Festival de Brasília. O seu papel não fica só, nem mesmo precisa se impor, ao se comparar o histórico de narrativas que excluem ou subjugam a capacidade de ação da mulher negra. O dilema da sua personagem, refém da solidão e loucura após uma tragédia, é enfrentado com a ajuda e um nível de coprotagonismo da jovem Violeta, interpretada sob um naturalismo leve e apaixonante de Aline Brunne, a que tivemos a sorte de descobrir-se enquanto atriz durante a criação do filme.

Tão expressivo quanto as duas, é o sorriso no olhar da avó de Violeta, Roquelina, encarnada por Dona Dinalva, uma sambadeira e integrante da irmandade da Boa Morte; bem como na autonomia da sua amiga Cidão (Arlete Dias).

São as mulheres as protagonistas dos segredos e do curso da vida em Café com Canela. São elas, e suas atrizes, que fogem de uma leitura imobilizante da solidão da mulher negra, e manejam uma performance afetiva, típica do cinema negro no feminino, conceituado por Edileuza Penha de Souza (2014). Por sinal, durante o debates do filme, tanto em Salvador, quanto em Brasília, foi possível perceber a contribuição das atrizes e da diretora para superar as imperfeições do roteiro.

Mas a presença masculina nas suas vidas não é apenas pelo vazio ou coerção que tentam imputar como papel do homem negro. Há uma possibilidade de solidariedade, presente no marido de Violeta, Paulinho (Guilherme Silva); e no médico Ivan que revisa a infeliz domesticação do homossexual negro, no corpo do único ator “global”, Babu Santana. 

Ambivalência
Café com Canela carrega um dilema para o cinema negro nos postos principais de propriedade intelectual, pois Glenda Nicácio divide a direção com um branco, Ary Rosa, e o mesmo também é o autor do roteiro. Seja por Zózimo Bubul, o Dogma Feijoada, e a maioria do ciclos internacionais do cinema negro, corporificar a direção é o ponto onde o diálogo com o Outro não está disposto a concessões. Porém, em um universo escasso de diretoras negras, não dá para secundarizar a contribuição de Glenda. Mais ainda, temos um caso que nos faz repensar o poder intransponível da direção, o seu modelo de autoria individual, e como isso pode enfraquecer o aspecto coletivo do cinema negro.

Nesta obra, a cultura negra consegue transformar em algo sublime a experiência de terror do passado e do presente, por meio de símbolos, performances e prioritariamente fluxos de reconhecimento entre pessoas com uma história em comum (GILROY, 2012). Fazer essa operação de uma dupla consciência, ambivalente, dentro da indústria audiovisual, uma das maiores expressões do domínio brancocêntrico moderno, é algo inerente a qualquer ciclo ou integrante do cinema negro no mundo.

Também é inerente ao cinema negro, e qualquer outro movimento cinematográfico, imprescindir do elemento político. Nas palavras de Viviane Ferreira, é o aspecto político, e não a meritocracia que possibilita às mulheres negras conseguir realizar filmes de longa metragem no Brasil. Viviane fala com a propriedade de ser a diretora do renomado curta Dia de Jerusa (2014), em processo para se transformar no primeiro longa de ficção dirigido exclusivamente por uma mulher negra, desde que Adélia Sampaio filmou Amor Maldito (1984).

Porém, Café com Canela, prioriza politicamente como lugar de fala responsável por sua produção o curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Recôncavo (UFRB), em Cachoeira, algo explicitado na fala de abertura de Ary Rosa no XIII Panorama em Salvador.

O curso da UFRB foi criado em 2009, e, de lá para cá não foge do quadro de ausência de professores negros e negras no nível superior brasileiro. Tem um corpo docente respeitável, liderado por Amaranta Cesar, uma conhecedora do cinema africano, mas não existe um Osmundo Pinho ou uma Ângela Figueiredo, professores da UFRB que colocam a universidade na rota transatlântica mais avançada do pensamento negro e descolonial.

O posicionamento do curso no fluxo do cinema negro é primordialmente a partir dos alunos, e tem como marco o surgimento do coletivo Tela Preta. Coube a eles realçar uma agenda política, uma literatura, e um modo da fazer, inclusive por ousar na ficção em um curso focado no documentário, por meio de Cinzas (2015), de Larissa Fulana de Tal, e agora com O Som do Silêncio (2017), de David Aynan. Duas obras dotadas de complexidade suficiente para compor qualquer narrativa densa sobre o cinema negro contemporâneo no Brasil. Diga-se de passagem, Café com Canela deixa rastros da influência do Tela Preta ao utilizar o ator protagonista de Cinzas, Guilherme Silva, e contar com a participação de uma das suas integrantes, a jovem e já experiente Thamires Santos, entre as assistentes de direção e produção. 

A exibição  
A experiência mais instigante do cinema negro é o ciclo dos race movies nos EUA, entre os anos 1910 e 1940, quando Oscar Micheaux foi ícone de um cinema coerente na linguagem, na autonomia da produção, e, por fim, no controle ou capacidade de explorar a exibição.

Nos resta agora finalizar ao falar da exibição, processo chave para chegar até um público negro que tem fortalecido a obra nos festivais. Café com Canela tem garantida a exibição em uma televisão pública aberta, a TVE-BA, enquanto contrapartida do edital que o credenciou, realizado pelo Instituto de Radiodifusão Pública da Bahia (Irdeb), com aporte majoritário do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Fora a televisão, uma janela de significativo alcance popular, Café com Canela, ainda é restrito a festivais, e o perfil da produção tende a caminhar por salas de cinema controladas por grupos seletos que veem as plateias estagnarem juntamente com o vazio das suas obras. Hoje, o cinema negro se tornou necessário para a sobrevivência deste círculos, e não a toa ganha prêmios e mais prêmios, a exemplo da farra na X Janela Internacional de Recife que escolheu Deus (2017), de Vinicius Silva, como melhor filme pelo júri oficial.

No Festival de Brasília, quando fez sua estreia, Café com Canela foi tragado por uma estratégia da branquitude: continuar a discutir a questão racial a partir do seu olhar, nesse caso, o paternalismo e a tentativa de silenciamento presente nas imagens e na repercussão de Vazante, dirigido por Daniela Thomas.

Já a exibição no Panorama em Salvador, o público foi proporcionalmente menor e embraquecido ao se considerar o estrondo no verão de 2016, quando as salas da cidades encheram para o lançamento de Òrun Àyiê: a criação do mundo, de Cintia Maria e Jamile Coelho, e as exibições de estreia na cidade de Cinzas (2015); Dia de Jerusa (2014); Verão dos Deuses (2015), de Eliciana Nascimento; e Kbela (2015), de Yasmin Thayná.

O local do Panorama, o Espaço Unibanco - Glauber Rocha, é sintomático do elitismo colonial baiano-brasileiro. Foi onde o antigo Cine Guarany se transformou na primeira, e talvez única sala fomentada pela Embrafilme devido uma luta dos cineastas locais frente o misto de fechamento e controle internacional sobre a exibição adensada nos anos 1970 e 1980. O prédio continua a ser público, mas segue um traço pop cult desde que ingressou no circuito Itaú-Unibanco. Hoje vive vazio, um corpo estranho para os transeuntes e habitantes do Centro, e, mesmo que não queira, dialoga com o projeto de higienização da região, a começar pela retirada dos comerciantes da vizinha Rua do Couro.

Durante um sobrevoo no último Panorana, o público parecia mais interessado na festa do terraço, e a repercussão sobre a maioria dos filmes era desanimadora. A sensação foi de respiro quando o cinema negro deixava seus rastros nos curtas de 2017: Nada, de Gabriel Martins; Travessia, de Safira Moreira; O Som do Silêncio, de David Aynan; Pela Suja Minha Carne, de Bruno Ribeiro; e Na missão, com Kadu, de Aiano Bemfica, Kadu Freitas e Pedro Maia, capaz de cortar o silêncio da sala com soluços. Ou quando um cinema de assunto negro respeitável se apresentou nos longas documentais: Diários de Classe, de Maria Carolina e Igor Souto; e Quilombo Rio dos Macacos, de Josias Pires.

Café com Canela, e o conjunto do cinema negro, tem a possibilidade de fugir do exclusivismo deste ambiente de recepção, que flutua entre salas de arte e complexos multiplex. 

O Encontro de Cinema Negro Zózimo Bubul, no Rio de Janeiro, e as dezenas de mostras, seminários e festivais, como a I Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio, em Brasília, são alguns dos canais que se relacionam com todas as formas de construção comunitária e diasporica dos nossos territórios, e principalmente com o público. Um cenário não contabilizado no receituário da Ancine, mas que permite as Margaridas encontrarem um ambiente de afeto e liberdade.  

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GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2012.

SOUZA, Edileuza Penha de. Cinema na panela de barro: mulheres negras, narrativas de amor, afeto e identidade/ Tese (doutorado) - Universidade de Brasília, Programa de Pós -Graduação em Educação, 2013.

quinta-feira, julho 30, 2015

Cinzas: onde está a mulher negra?



Exibido pela primeira vez no Latinidades, Cinzas, dirigido por Larissa Fulana de Tal, reconstrói o recorrente debate sobre as relações entre homens e mulheres negras. Adaptado do romance de Davi Nunes, a obra se livra da prisão do feminismo branco, e seus esteriótipos do homem negro: violento, lúdico, ludibrie e, ou, ludibrioso. O cotidiano de um jovem negro em Salvador, "nova classe média", é acompanhado por suas reflexões e irritação.

A casa com geladeira, pintura e fogão novo, não passa de um cubículo. Pega o ônibus cheio, ouve no rádio as notícias sobre a chacina do Cabula. Chega no trabalho, um call center. Salário, mínimo. Não é pago em dia. A chefe branca lhe assedia. Vai para a faculdade, curso nas humanas, se depara com um conhecimento inverossímil.

Onde está a mulher negra? Não apenas na diretora, é a esposa do personagem, ignorada nas suas reflexões, e no mesmo cotidiano opressivo. O monólogo é falso, egoísta. A crítica ao homem negro vai para outro patamar. Falei a Larissa após o filme: "O filme me tocou, mas tenho um segredo que não consigo acessar". Ela explicou sobre o apagamento, e sua inspiração na conversa comum entre as minas. E foi além, muito além: "É um filme sobre relação entre duas pessoas". A diretora e sua obra transcende o véu. Atingem a universalidade negada a nossa experiência.

Parte chave na reinvenção do audiovisual brasileiro esteve presente no Latinidades:  Yasmin Thayná​, Everlane Moraes, Thamires Santos, Viviane Ferreira e Janaína Oliveira. Diretoras, roteiristas, produtoras, pesquisadoras. A sensação é estar sentado na esquina da história, e desta vez não vai ter como silenciar.

A elas e todas as mulheres negras latino-americanas e caribenhas, parabéns. O dia é de vocês.

quarta-feira, julho 01, 2015

30 de junho: um dia de vitória contra o neocolonialismo e racismo



O ponto mais importante na coletiva de Dilma no último dia 30 de junho foi reconhecer que Brasil e EUA têm em comum a experiência com a escravidão. Não se trata de um acaso colonialista, e sim marca na constituição de dois estados-nação. Ambos, só podem discutir qualquer modelo de democracia tendo isso como pedra fundamental.

Por isso, reconhecer a força desta nefasta instituição é chave para desnudar a sincronia entre o neocolonialismo expresso na repórter da GloboNews e o fascismo liderado por Eduardo Cunha na sessão de ontem na Câmara dos Deputados.

No caso brasileiro, é recorrente vir de parcela majoritária das nossas elites uma suposta inferioridade do país, e consequentemente do seu povo. Nessa lógica, somos incapazes para disputar as grandes narrativas históricas. E quem tem que pagar por isso? A ferro e fogo aqueles que são tratados como a fardo do nosso atraso: o povo. Este povo tem cor predominante: preta!

Não por acaso esses discursos retrógrados se exacerbam quando a população negra se organiza de forma mais contundente no país. Enquanto os partidos se dilaceram, e os modelos etnocêntricos de movimentos sociais também, mais uma vez os laços de solidariedade entre a população negra se fortalecem para enfrentar essa ofensiva, e pautarem o discurso no parlamento.

ps: um salve para Orlando Silva (PCdoB-SP) e Benedita da Silva (PT-RJ). eles fizeram os discursos mais comoventes e articulados da noite.