O que move a torcida mais negra do Brasil?
Créditos: /ECV/Maurícia da Matta
Sábado, 05 de dezembro, saio de casa às 7h e uma das primeiras vistas é um senhor caminhando com a camisa do Mais Querido, o Ypiranga. O uniforme amarelo e preto, utilizado por Mestre Pastinha na sua moderna e ancestral capoeira de angola, ameaçou as elites baianas entre os anos 1910 e 1951, ano do seu último título.
Talvez você não tenha noção, mas o maior ídolo desse time,
Popó, o Apolinário Santana, é homenageado na rua principal do Engenho Velho da
Federação, o bairro que talvez mais congregue terreiros de candomblé por metro
quadrado no mundo, muitos deles de importância ímpar, como Bogun, Oxumarê, Casa
Branca e Cobre.
Um time de torcida, jogadores e até dirigentes pretos,
vindos do trabalho portuário dominado por africanos e seus filhos, que ameaçava
as elites de perder o controle sobre os negócios e o simbólico de uma das
coisas que mais move corações e mentes por aqui.
Na geopolítica do futebol brasileiro, o Vasco da Gama é o
mais conhecido pela transgressão por profissionalizar jogadores negros. Mas em Salvador na época que o Ypiranga crescia vinham outros clubes com perfis
semelhantes como Botafogo, Fluminense, São Bento, Nacional e Internacional.
A resposta foi a “Liga dos Brancos”, capitaneada por agremiações
como o Esporte Clube Vitória, o Baiano de Tênis e a Associação Atlética. Eles
traziam até jogadores brancos de outros países, mas perdiam o bába nos campos
da Pólvora ou do Rio Vermelho.
O jeito dado na nossa história de mãos sujas de sangue foi
praticamente acabar o Ypiranga, e apresentar outras paixões para o povo dessa
cidade que adora gingar e chegar junto para disputar a bola. É nessa pegada que
o Baiano de Tênis e a Associação Atlética fundam o Esporte Clube Bahia na
década de 1930, quando o mito da democracia racial finca suas garras de uma
identidade nacional e baiana que o negro é mero folclore, diria Abdias do
Nascimento.
Tempo difíceis, de ditaduras que fizeram homens como Carlos Marighella, ciente e vivendo o racismo que se abatia nessa terra,
seguir a sina de não falar muito de raça.
Pois bem, depois de ver o senhor com a camisa do Ypiranga, voltei
para casa porque tinha esquecido algo. Quando retornei na rua chovia para me
lembrar que no dia anterior, uma sexta-feira 04 de dezembro, dia de festejos de
uma filha de Oyá muito famosa, Barbinha, a chuva apareceu no meio de um sol
escaldante.
Foi nesse mesmo dia que a torcida mais negra do país, a do
Esporte Clube Vitória, terminou a noite em prantos e silêncio.
Sim, o time de cântico nêêêgôôôôô foi apontado como a torcida
proporcionalmente mais autodeclarada negra do país segundo o Datafolha
(2019), com cerca de 90% não brancos. Anos atrás, o jornal Correio24h fez uma pesquisa
sobre o perfil do torcedor do Salvador e a presença rubro-negra em bairros
populares também foi expressiva e proporcionalmente superior ao rival.
Lidar com esses dados, nus e crus, já é por si um giro para você
acostumado com o lenga lenga que o Vitória é o time de uma torcida de elite, e
tantas outras bobagens que circulam por aí.
Muitos ypirangueses como meu tio Evandro foram dividindo o coração e se identificando com o vermelho e preto de Siri, Romenil, André Catimba, Bigu, Dida... Virou o time a ter um africano como ídolo, o nigeriano Rick, algo desconhecido no Brasil.
Virou o time da família Vitória
Afro de Imolê, Fábio Mandingo, Lulu, Josie, Adriana, Guell Adún, Gonesa, Laurentino, Leleco, Luciana, Ícaro, Leo Ornelas, Sílvio
Oliveira, Leandro Omowale, Sento Sé, MC Xarope, Mauro, Salamanda, Dão, Fafá, Gledson...
São esses corpos a descer as arquibancadas do Santuário a ameaçar novas e velhas elites que negam ou usurpam a democracia, nossas joias
que brotam na divisão de base, e o dinheiro movimentado por uma das maiores do
país (os rankings costumam apontar que temos uma nação maior que Coritiba, ATL-PR,
Ceará, Fortaleza, Santa Cruz e trocando pau a pau com a do Sport).
Veja, não temos um título brasileiro, temos um dos maiores
desníveis dentro dos campeonatos estaduais com o principal rival, e nosso maior
trunfo é ser o maior campeão do nordeste, sob constante ameaça.
O Vitória é o time que poderia ter sido, que poderia ter
vencido, mas alguma coisa do destino vai lá e nos coloca em desgraça ou em uma
final contra o Palmeiras Parmalat ou o Santos de Neymar, Ganso e Robinho.
Mais uma vez essa nuvem carregada que atormenta os fiéis do nosso
quilombo, o Barradão, chegou quando o Confiança de Sergipe, que até outro dia
vencíamos estalando os dedos, virou o jogo em menos de três minutos e tirou a
crença que irradiava as redes sociais em tempos de pandemia: temos condições de
dar um arrancada e voltar para Série A (por onde nosso melhor período foi na década
de 1970, e entre 1993 e 2003, quando o Brasil tinha tantos craques que foi para
três finais de copa do mundo e venceu duas).
Nós tivemos grandes times e jogadores. Mas no fundo nunca fomos
do âmago das elites do futebol. Nosso romance é daqueles que se fazem das
tragédias, dos pontos de vistas silenciados pela imprensa, dos árbitros mal
intencionados, e um imponderável que se torna regra como a virada do Confiança.
O sofrimento já faz jus à alma rubro-negra ser uma das mais
negras desse país, como a Ponte Preta. Mas ser negro é também quem faz da dor o
sublime, a alegria ou mesmo a violência. Seja o que for, na pomba ou no facão, é preciso
se conhecer e se amar para se mover, e chegar até onde sabe lá no
fundo que chegará: a redenção.
Um caminho que pode ficar mais distante se a ira insuflada por seu presidente e os fracassos nos últimos anos for deslocada aos jogadores e torcedores.